FUTUROS AMORES

Um blog sobre amor, arte e acaso.

27 de jun. de 2010

A Mensagem

Postado por Priscila |

[Marc Chagall, Green landscape]


A princípio, quando a moça disse que sentia angústia, o rapaz se surpreendeu tanto que corou e mudou rapidamente de assunto para disfarçar o aceleramento do coração. Mas há muito tempo – desde que era jovem – ele passara afoitamente do simplismo infantil de falar dos acontecimentos em termos de “coincidência”. Ou melhor – evoluindo muito e não acreditando nunca mais – ele considerava a expressão “coincidência” um novo truque de palavras e um renovado ludíbrio.

Assim, engolida emocionadamente a alegria involuntária que a verdadeiramente espantosa coincidência dela também sentir angústia lhe provocara – ele se viu falando com ela na sua própria angústia, e logo com uma moça! ele que de coração de mulher só recebera o beijo de mãe. Viu-se conversando com ela, escondendo com secura o maravilhamento de enfim poder falar sobre coisas que realmente importavam; e logo com uma moça! Conversavam também sobre livros, mal podiam esconder a urgência que tinham de pôr em dia tudo em que nunca antes haviam falado.

Mesmo assim, jamais certas palavras eram pronunciadas entre ambos. Dessa vez não porque a expressão fosse mais uma armadilha de que os outros dispõem para enganar os moços. Mas por vergonha. Porque nem tudo ele teria coragem de dizer, mesmo que ela, por sentir angústia, fosse pessoa de confiança. Nem em missão ele falaria jamais, embora essa expressão tão perfeita, que ele por assim dizer criara, lhe ardesse na boca, ansiosa por ser dita. Naturalmente, o fato dela também sofrer simplificara o modo de se tratar uma moça, conferindo-lhe um caráter masculino. Ele passou a tratá-la como camarada.

Ela mesma também passou a ostentar com modéstia aureolada a própria angústia, como um novo sexo. Híbridos – ainda sem terem escolhido um modo pessoal de andar, e sem terem ainda uma caligrafia definitiva, cada dia a copiarem os pontos de aula com letra diferente – híbridos eles se procuravam, mal disfarçando a gravidade. Uma vez ou outra, ele ainda sentia aquela incrédula aceitação da coincidência: ele, tão original, ter encontrado alguém que falava a sua língua! Aos poucos compactuaram. Bastava ela dizer, como numa senha, “passei ontem uma tarde ruim”, e ele sabia com austeridade que ela sofria como ele sofria. Havia tristeza, orgulho e audácia entre ambos.

Até que também a palavra angústia foi secando, mostrando como a linguagem falada mentia.(Eles queriam um dia escrever.) A palavra angústia passou a tomar aquele tom que os outros usavam, e passou a ser um motivo de leve hostilidade entre ambos. Quando ele sofria, achava uma gafe ela falar em angústia. “Eu já superei esta palavra”, ele sempre superava tudo antes dela, só depois é que a moça o alcançava. E aos poucos ela se cansou de ser aos olhos dele a única mulher angustiada. Apesar disso lhe conferir um caráter intelectual, ela também era alerta a essa espécie de equívocos. Pois ambos queriam, acima de tudo, ser autênticos. Ela, por exemplo, não queria erros nem mesmo a seu favor, queria a verdade, por pior que fosse. Aliás, às vezes tanto melhor se fosse “por pior que fosse”. Sobretudo a moça já começara a não sentir prazer em ser condecorada com o título de homem ao menor sinal que apresentava de... de ser uma pessoa. Ao mesmo tempo que isso a lisonjeava, ofendia um pouco: era como se ele se surpreendesse de ela ser capaz, exatamente por não julgá-la capaz. Embora, se ambos não tomassem cuidado, o fato dela ser mulher poderia de súbito vir à tona. Eles tomavam cuidado. Mas, naturalmente, havia a confusão, a falta de possibilidade de explicação, e isso significava tempo que ia passando. Meses mesmo. E apesar da hostilidade entre ambos se tornar gradativamente mais intensa, como mãos que estão perto e não se dão, eles não podiam se impedir de se procurar. E isso porque – se na boca dos outros chamá-los de “jovens” lhes era uma injúria – entre ambos “ser jovem” era o mútuo segredo, e a mesma desgraça irremediável. Eles não podiam deixar de se procurar porque, embora hostis – com o repúdio que seres de sexo diferente têm quando não se desejam –, embora hostis, eles acreditavam na sinceridade que cada um tinha, versus a grande mentira alheia. O coração ofendido de ambos não perdoava a mentira alheia. Eles eram sinceros. E, por não serem mesquinhos, passavam por cima do fato de terem muita facilidade para mentir – como se o que realmente importasse fosse apenas a sinceridade da imaginação. Assim continuaram a se procurar, vagamente orgulhosos de serem diferentes dos outros, tão diferentes a ponto de nem se amarem. Aqueles outros que nada faziam senão viver. Vagamente conscientes de que havia algo de falso em suas relações. Como se fossem homossexuais de sexo oposto, e impossibilitados de unir, em uma só, a desgraça de cada um. Eles apenas concordavam no único ponto que os unia: o erro que havia no mundo e a tácita certeza de que se eles não o salvassem seriam traidores. Quanto a amor, eles não se amavam, era claro. Ela até já lhe falara de uma paixão que tivera recentemente por um professor.

Ele chegara a lhe dizer – já que ela era como um homem para ele –, chegara mesmo a lhe dizer, com uma frieza que inesperadamente se quebrara em horrível bater de coração, que um rapaz é obrigado a resolver “certos problemas”, se quiser ter a cabeça livre para pensar. Ele tinha dezesseis anos, e ela, dezessete. Que ele, com severidade, resolvia de vez em quando certos problemas, nem seu pai sabia.

O fato é que, tendo uma vez se encontrado na parte secreta deles mesmos, resultara na tentação e na esperança de um dia chegar ao máximo. Que máximo? Que é, afinal, que eles queriam? Eles não sabiam, e usavam-se como quem se agarra em rochas menores até poder sozinho galgar a maior, a difícil e a impossível; usavam-se para se exercitarem na iniciação; usavam-se impacientes, ensaiando um com o outro o modo de bater asas para que enfim – cada um sozinho e liberto pudesse dar o grande vôo solitário que também significaria o adeus um do outro. Era isso? Eles se precisavam temporariamente, irritados pelo outro ser desastrado, um culpando o outro de não ter experiência. Falhavam em cada encontro, como se numa cama se desiludissem. O que é, afinal, que queriam? Queriam aprender. Aprender o quê? eram uns desastrados. Oh, eles não poderiam dizer que eram infelizes sem ter vergonha, porque sabiam que havia os que passam fome; eles comiam com fome e vergonha. Infelizes? Como? se na verdade tocavam, sem nenhum motivo, num tal ponto extremo de felicidade como se o mundo fosse sacudido e dessa árvore imensa caíssem mil frutos. Infelizes? se eram corpos com sangue como uma flor ao sol. Como? se estavam para sempre sobre as próprias pernas fracas, conturbados, livres, milagrosamente de pé, as pernas dela depiladas, as dele indecisas mas a terminarem em sapatos número 44. Como poderiam jamais ser infelizes seres assim?

Eles eram muito infelizes. Procuravam-se cansados, expectantes, forçando, uma continuação da compreensão inicial e casual que nunca se repetira – e sem nem ao menos se amarem. O ideal os sufocava, o tempo passava inútil, a urgência os chamava – eles não sabiam para o que caminhavam, e o caminho os chamava. Um pedia muito do outro, mas é que ambos tinham a mesma carência, e jamais procurariam um par mais velho que lhes ensinasse, porque não eram doidos de se entregarem sem mais nem menos ao mundo feito.

Um modo possível de ainda se salvarem seria o que eles nunca chamariam de poesia. Na verdade, o que seria poesia, essa palavra constrangedora? Seria encontrarem-se quando, por coincidência, caísse uma chuva repentina sobre a cidade? Ou talvez, enquanto tomavam um refresco, olharem ao mesmo tempo a cara de uma mulher passando na rua? ou mesmo encontraremse por coincidência na velha noite de lua e vento? Mas ambos haviam nascido com a palavra poesia já publicada com o maior despudor nos suplementos de domingo dos jornais. Poesia era a palavra dos mais velhos. E a desconfiança de ambos era enorme, como de bichos. Em quem o instinto avisa: que um dia serão caçados. Eles já tinham sido por demais enganados para poderem agora acreditar.

E, para caçá-los, teria sido preciso uma enorme cautela, muito faro e muita lábia, e um carinho ainda mais cauteloso – um carinho que não os ofendesse – para, pegando-os desprevenidos, poder capturá-los na rede. E, com mais cautela ainda para não despertá-los, levá-los astuciosamente para o mundo dos viciados, para o mundo já criado; pois esse era o papel dos adultos e dos espiões. De tão longamente ludibriados, vaidosos da própria amargura, tinham repugnância por palavras, sobretudo quando uma palavra – como poesia – era tão esperta que quase exprimia, e aí então é que mostrava mesmo como exprimia pouco. Ambos tinham, na verdade, repugnância pela maioria das palavras, o que estava longe de facilitar-lhes uma comunicação, já que eles ainda não haviam inventado palavras melhores: eles se desentendiam constantemente, obstinados rivais. Poesia? Oh, como eles a detestavam. Como se fosse sexo. Eles também achavam que os outros queriam caçá-los não para o sexo, mas para a normalidade. Eles eram medrosos, científicos, exaustos de experiência. Na palavra experiência, sim, eles falavam sem pudor e sem explicá-la: a expressão ia mesmo variando sempre de significado. Experiência às vezes também se confundia com mensagem. Eles usavam ambas as palavras sem aprofundar-lhes muito o sentido. Aliás, não aprofundavam nada, como se não houvesse tempo, como se existissem coisas demais sobre as quais trocar idéias. Não percebendo que não trocavam nenhuma idéia.

Bem, mas não era apenas isso, e nem com essa simplicidade. Não era apenas isso: nesse ínterim o tempo ia passando, confuso, vasto, entrecortado, e o coração do tempo era o sobressalto e havia aquele ódio contra o mundo que ninguém lhes diria que era amor desesperado e era piedade, e havia neles a cética sabedoria de velhos chineses, sabedoria que de repente podia se quebrar denunciando duas caras que se consternavam porque eles não sabiam como se sentar com naturalidade numa sorveteria: tudo então se quebrava, denunciando de repente dois impostores. O tempo ia passando, nenhuma idéia se trocava, e nunca, nunca eles se compreendiam com perfeição como na primeira vez em que ela dissera que sentia angústia e, por milagre, também ele dissera que sentia, e formara-se o pacto horrível. E nunca, nunca acontecia alguma coisa que enfim arrematasse a cegueira com que estendiam as mãos e que os tornasse prontos para o destino que impaciente os esperava, e os fizesse enfim dizer para sempre adeus.

Talvez estivessem tão prontos para se soltarem um do outro como uma gota de água quase a cair, e apenas esperassem algo que simbolizasse a plenitude da angústia para poderem se separar. Talvez, maduros como uma gota de água, tivessem provocado o acontecimento de que falarei.

O vago acontecimento em torno da casa velha só existiu porque eles estavam prontos para isso. Tratava-se apenas de uma casa velha e vazia. Mas eles tinham uma vida pobre e ansiosa como se nunca fossem envelhecer, como se nada jamais lhes fosse suceder – e então a casa tornou-se um acontecimento. Haviam voltado da última aula do período escolar. Tinham tomado o ônibus, saltado, e iam andando. Como sempre, andavam entre depressa e soltos, e de repente devagar, sem jamais acertar o passo, inquietos quanto à presença do outro. Era um dia ruim para ambos, véspera de férias. A última aula os deixava sem futuro e sem amarras, cada um desprezando o que na casa mútua de ambos as famílias lhes asseguravam como futuro e amor e incompreensão. Sem um dia seguinte e sem amarras, eles estavam pior que nunca, mudos, de olhos abertos.

Nessa tarde a moça estava de dentes cerrados, olhando tudo com rancor ou ardor, como se procurasse no vento, na poeira e na própria extrema pobreza de alma mais uma provocação para a cólera.

E o rapaz, naquela rua da qual eles nem sabiam o nome, o rapaz pouco tinha do homem da Criação. O dia estava pálido, e o menino mais pálido ainda, involuntariamente moço, ao vento, obrigado a viver. Estava porém suave e indeciso, como se qualquer dor só o tornasse ainda mais moço, ao contrário dela, que estava agressiva. Informes como eram, tudo lhes era possível, inclusive às vezes permutavam as qualidades: ela se tornava como um homem, e ele com uma doçura quase ignóbil de mulher. Várias vezes ele quase se despedira, mas, vago e vazio como estava, não saberia o que fazer quando voltasse para casa. como se o fim das aulas tivesse cortado o último elo. Continuara, pois, mudo atrás dela, seguindo-a com a docilidade do desamparo. Apenas um sétimo sentido de mínima escuta ao mundo o mantinha, ligando-o em obscura promessa ao dia seguinte. Não, os dois não eram propriamente neuróticos e – apesar do que eles pensavam um do outro vingativamente nos momentos de mal contida hostilidade – parece que a psicanálise não os resolveria totalmente. Ou talvez resolvesse. Era uma das ruas que desembocam diante do Cemitério S. João Batista, com poeira seca, pedras soltas e pretos parados à porta dos botequins.

Os dois andavam na calçada esburacada que mal os continha de tão estreita. Ela fez um movimento – ele pensou que ela ia atravessar a rua e deu um passo para segui-la – ela se voltou sem saber de que lado ele estava – ele recuou procurando-a. Naquele mínimo instante em que se buscaram inquietos, viraram-se ao mesmo tempo de costas para os ônibus – e ficaram de pé diante da casa, tendo ainda a procura no rosto.

Talvez tudo tivesse vindo de eles estarem com a procura no rosto. Ou talvez do fato da casa estar diretamente encostada à calçada e ficar tão “perto”. Eles mal tinham espaço para olhá-la, imprensados como estavam na calçada estreita, entre o movimento ameaçador dos ônibus e a imobilidade absolutamente serena da casa. Não, não era por bombardeio: mas era uma casa quebrada, como diria uma criança. Era grande, larga e alta como as casas ensobradadas do Rio antigo. Uma grande casa enraizada.

Com uma indagação muito maior do que a pergunta que tinham no rosto, eles se haviam voltado incautelosamente ao mesmo tempo, e a casa estava tão perto como se, saindo do nada, lhes fosse jogada aos olhos uma súbita parede. Atrás deles os ônibus, à frente a casa – não havia como não estar ali. Se recuassem seriam atingidos pelos ônibus, se avançassem esbarrariam na monstruosa casa. Tinham sido capturados.

A casa era alta, e perto, eles não podiam olhá-la sem ter que levantar infantilmente a cabeça, o que os tornou de súbito muito pequenos e transformou a casa em mansão. Era como se jamais alguma coisa estivesse estado tão perto deles. A casa devia ter tido uma cor. E qualquer que fosse a cor primitiva das janelas, estas eram agora apenas velhas e sólidas. Apequenados, eles abriram os olhos espantados: a casa era angustiada.

A casa era angústia e calma. Como palavra nenhuma o fora. Era uma construção que pesava no peito dos dois meninos. Um sobrado como quem leva a mão à garganta. Quem? quem a construíra, levantando aquela feiúra pedra por pedra, aquela catedral do medo solidificado?! Ou fora o tempo que se colara em paredes simples e lhes dera aquele ar de estrangulamento, aquele silêncio de enforcado tranqüilo? A casa era forte como um boxeur sem pescoço. E ter a cabeça diretamente ligada aos ombros era a angústia. Eles olharam a casa como crianças diante de uma escadaria.

Enfim ambos haviam inesperadamente alcançado a meta e estavam diante da esfinge. Boquiabertos, na extrema união do medo e do respeito e da palidez, diante daquela verdade. A nua angústia dera um pulo e colocara-se diante deles – nem ao menos familiar como a palavra que eles tinham se habituado a usar. Apenas uma casa grossa, tosca, sem pescoço, só aquela potência antiga. Eu sou enfim a própria coisa que vocês procuravam, disse a casa grande. E o mais engraçado é que não tenho segredo nenhum, disse também a grande casa.

A moça olhava adormecida. Quanto ao rapaz, seu sétimo sentido enganchara-se na parte mais interior da construção e ele sentia na ponta do fio um mínimo estremecimento de resposta. Mal se movia, com medo de espantar a própria atenção. A moça ancorara-se no espanto, com medo de sair deste para o terror de uma descoberta. Mal falassem, e a casa desabaria. O silêncio de ambos deixava o sobrado intacto. Mas, se antes eles tinham sido forçados a olhá-lo, agora, mesmo que lhes avisassem que o caminho estava livre para fugirem, ali ficariam, presos pelo fascínio e pelo horror.

Fixando aquela coisa erguida tão antes deles nascerem, aquela coisa secular e já esvaziada de sentido, aquela coisa vinda do passado. Mas e o futuro?! Oh Deus, dai-nos o nosso futuro! A casa sem olhos, com a potência de um cego. E se tinha olhos, eram redondos olhos vazios de estátua. Oh Deus, não nos deixeis ser filhos desse passado vazio, entregai-nos ao futuro. Eles queriam ser filhos. Mas não dessa endurecida carcaça fatal, eles não compreendiam o passado: oh livrai-nos do passado, deixai-nos cumprir o nosso duro dever. Pois não era a liberdade o que as duas crianças queriam, elas bem queriam ser convencidas e subjugadas e conduzidas mas teria que ser por alguma coisa mais poderosa que o grande poder que lhes batia no peito.

A moça desviou subitamente o rosto, tão infeliz que sou, tão infeliz que sempre fui, as aulas acabaram, tudo acabou! – porque na sua avidez ela era ingrata com uma infância que fora provavelmente alegre. A moça subitamente desviou o rosto com uma espécie de grunhido.

Quanto ao rapaz, ele rapidamente perdia pé na vaguidão como se fosse ficando sem um pensamento. Isso também era resultado da luz da tarde: era uma luz lívida e sem hora. O rosto do rapaz estava esverdeado e calmo, e ele agora não tinha nenhuma ajuda das palavras dos outros: exatamente como temerariamente aspirara um dia conseguir. Só que não contara com a miséria que havia em não poder exprimir.

Verdes e nauseados, eles não saberiam exprimir. A casa simbolizava alguma coisa que eles jamais poderiam alcançar, mesmo com toda uma vida de procura de expressão. Procurar a expressão, por uma vida inteira que fosse, seria em si um divertimento, amargo e perplexo, mas divertimento, e seria uma divergência que pouco a pouco os afastaria da perigosa verdade – e os salvaria. Logo eles que, na desesperada esperteza de sobreviver, já tinham inventado para eles mesmos um futuro: ambos iam ser escritores, e com uma determinação tão obstinada como se exprimir a alma a suprimisse enfim. E se não suprimisse, seria um modo de só saber que se mente na solidão do próprio coração.

Ao passo que com a casa do passado eles não poderiam brincar. Agora, tão menores que ela, parecia-lhes que tinham apenas brincado de ser moço e doloroso e de dar a mensagem. Agora, espantados, tinham finalmente o que haviam perigosa e imprudentemente pedido: eram dois jovens realmente perdidos. Como diriam as pessoas mais velhas, “eles estavam tendo o que bem mereciam”. E eram tão culpados como crianças culpadas, tão culpados como são inocentes os criminosos. Ah, se ainda pudessem apaziguar o mundo por eles exacerbado, assegurando-lhe: “estávamos apenas brincando! somos dois impostores!” Mas era tarde. “Rende-te sem condição e faze de ti uma parte de mim que sou o passado” – dizia-lhes a vida futura. E, por Deus, em nome de que poderia alguém exigir que tivessem esperança de que o futuro seria deles? quem?! mas quem se interessava em esclarecer-lhes o mistério, e sem mentir? havia por acaso alguém trabalhando nesse sentido? Dessa vez, emudecidos como estavam. nem lhes ocorreria acusar a sociedade.

A moça havia subitamente voltado o rosto com um grunhido, uma espécie de soluço ou tosse. “Meio que chorar nessa hora é bem de mulher”, pensou ele do fundo de sua perdição, sem saber o que queria dizer com “essa hora”. Mas esta foi a primeira solidez que ele encontrou para si mesmo. Agarrando-se a essa primeira tábua, pôde voltar cambaleante à tona, e como sempre antes da moça. Voltou antes dela, e viu uma casa de pé com um cartaz de “Aluga-se”. Ouviu o ônibus às suas costas, viu uma casa vazia, e ao seu lado a moça com um rosto doentio, procurando escondê-lo do homem já acordado: ela procurava por algum motivo ocultar a cara. Ainda vacilante, ele esperou com polidez que ela se recompusesse. Esperou vacilante, sim, mas homem. Magro e irremediavelmente moço, sim, mas homem. Um corpo de homem era a solidez que o recuperava sempre. Volta e meia, quando precisava muito, ele se tornava um homem. Então, com mão incerta, acendeu sem naturalidade um cigarro, como se ele fosse os outros, socorrendo-se dos gestos que a maçonaria dos homens lhe dava como apoio e caminho. E ela? Mas a moça saiu de tudo isso pintada com batom, com o ruge meio manchado, e enfeitada por um colar azul. Plumas que um momento antes haviam feito parte de uma situação e de um futuro, mas agora era como se ela não tivesse lavado o rosto antes de dormir e acordasse com as marcas impudicas de uma orgia anterior. Pois ela, volta e meia, era uma mulher. Com um cinismo reconfortante, o rapaz olhou-a curioso. E viu que ela não passava de uma moça. — Fico por aqui mesmo, disse-lhe então despedindo-se com altivez, ele que nem sequer tinha mais hora certa de voltar para casa e sentia no bolso a chave da porta. Despediram-se e eles, que nunca se apertavam as mãos porque seria convencional, apertaram-se as mãos, pois ela, na falta de jeito de em tão má hora ter seios e um colar, ela estendera desastradamente a sua. O contato das duas mãos úmidas se apalpando sem amor constrangeu o rapaz como uma operação vergonhosa, ele corou. E ela, com batom e ruge, procurou disfarçar a própria nudez enfeitada. Ela não era nada, e afastou-se como se mil olhos a seguissem; esquiva na sua humildade de ter uma condição.

Vendo-a afastar-se, ele a examinou incrédulo, com um interesse divertido: “será possível que mulher possa realmente saber o que é angústia?” E a dúvida fez com que ele se sentisse muito forte.

“Não, mulher servia mesmo era para outra coisa, isso não se podia negar.” E era de um amigo que ele precisava. Sim, de um amigo leal. Sentiu-se então limpo e franco, sem nada a esconder, leal como um homem. De qualquer tremor de terra, ele saía com um movimento livre para a frente, com a mesma orgulhosa inconseqüência que faz o cavalo relinchar. Enquanto ela saiu costeando a parede como uma intrusa, já quase mãe dos filhos que um dia teria, o corpo pressentindo a submissão, corpo sagrado e impuro a carregar. O rapaz olhou-a, espantado de ter sido ludibriado pela moça tanto tempo, e quase sorriu, quase sacudia as asas que acabavam de crescer. Sou homem, disse-lhe o sexo em obscura vitória. De cada luta ou repouso, ele saía mais homem, ser homem se alimentava mesmo daquele vento que agora arrastava poeira pelas ruas do Cemitério S. João Batista. O mesmo vento de poeira que fazia com que o outro ser, o fêmeo, se encolhesse ferido, como se nenhum agasalho fosse jamais proteger a sua nudez, esse vento das ruas.

O rapaz viu-a afastar-se, acompanhando-a com olhos pornográficos e curiosos que não pouparam nenhum detalhe humilde da moça. A moça que de súbito pôs-se a correr desesperadamente para não perder o ônibus...

Num sobressalto, fascinado, o rapaz viu-a correr como uma doida para não perder o ônibus, intrigado viu-a subir no ônibus como um macaco de saia curta. O falso cigarro caiu-lhe da mão...

Alguma coisa incômoda o desequilibrara. O que era? Um momento de grande desconfiança o tomava. Mas o que era?! Urgentemente, inquietantemente: o que era? Ele a vira correr toda ágil mesmo que o coração da moça, ele bem adivinhava, estivesse pálido. E vira-a, toda cheia de impotente amor pela humanidade, subir como um macaco no ônibus – e viu-a depois sentar-se

quieta e comportada, recompondo a blusa enquanto esperava que o ônibus andasse... Seria isso?

Mas o que poderia haver nisso que o enchia de desconfiada atenção? Talvez o fato dela ter corrido à toa, pois o ônibus ainda não ia partir, havia pois tempo... Ela nem precisava ter corrido... Mas o que havia nisso tudo que fazia com que ele erguesse as orelhas em escuta angustiada, numa surdez de quem jamais ouvirá a explicação?

Ele tinha acabado de nascer um homem. Mas, mal assumira o seu nascimento, e estava também assumindo aquele peso no peito; mal assumira a sua glória, e uma experiência insondável dava-lhe a primeira futura ruga. Ignorante, inquieto, mal assumira a masculinidade, e uma nova fome ávida nascia, uma coisa dolorosa como um homem que nunca chora. Estaria ele tendo o primeiro medo de que alguma coisa fosse impossível? A moça era um zero naquele ônibus parado, e no entanto, homem que agora ele era, o rapaz de súbito precisava se inclinar para aquele nada, para aquela moça. E nem ao menos inclinar-se de igual para igual, nem ao menos inclinar-se para conceder... Mas, atolado no seu reino de homem, ele precisava dela. Para quê? para lembrar-se de uma cláusula? para que ela ou outra qualquer não o deixasse ir longe demais e se perder? para que ele sentisse em sobressalto, como estava sentindo, que havia a possibilidade de erro? Ele precisava dela com fome para não esquecer que eram feitos da mesma carne, essa carne pobre da qual, ao subir no ônibus como um macaco, ela parecia ter feito um caminho fatal.

Que é! mas afinal que é que está me acontecendo? assustou-se ele. Nada. Nada, e que não se exagere, fora apenas um instante de fraqueza e vacilação, nada mais que isso, não havia perigo.

Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Mas dentro desse sistema de duro juízo final, que não permite nem um segundo de incredulidade senão o ideal desaba, ele olhou estonteado a longa rua – e tudo agora estava estragado e seco como se ele tivesse a boca cheia de poeira. Agora e enfim sozinho, estava sem defesa à mercê da mentira pressurosa com que os outros tentavam ensiná-lo a ser um homem. Mas e a mensagem?! a mensagem esfarelada na poeira que o vento arrastava para as grades do esgoto. Mamãe, disse ele.


[ LISPECTOR, Clarice, A mensagem In:____, A Legião Estrangeira.São Paulo, Ática, 1977]

1 comentários:

Vanessa Souza disse...

A angústia é inexorável.