Estava voltando para casa. Transporte público cheio. Numa das estações, um menino pequenino correu entre a multidão espremida no corredor da condução e parou em frente à cadeira em que eu havia acabado de sentar depois de muito sufoco.
Perguntei:
-- Você quer sentar no meu colo?
-- Quero, tia.
-- Como é o seu nome?
-- Davi. E o seu?
-- Priscila.
-- Da onde você tá vindo?
-- Do trabalho.
-- E vai pra onde?
-- Pra casa.
A mãe da criança veio atrás dele com muita dificuldade. Assim que ela chegou, ele me olhou nos olhos e disse algo muito sério, mas que, na hora, eu não fui capaz de entender. Então, para disfarçar a minha incompreensão, perguntei:
-- Você tem irmãos, Davi?
-- Meu irmão morreu, tia, você não ouviu?
A mãe virou o rosto de lado, com os olhos cheios d'água, sem conseguir olhar pra nós dois. Então entendi o olhar sério que ele tinha me lançado anteriormente.
-- Desculpa, Davi. A tia não tinha entendido direito.
Eu poderia ter mudado de assunto, ficado super constrangida, mas algo maior me tocou. Quando um menino, tão pequeno, senta no colo de uma estranha e o primeiro assunto que ele toca é a morte do irmão, é porque ele precisa (e muito) falar sobre isso... Pela reação da mãe, percebi que era um assunto difícil e, talvez, pouco discutido com ele. Compreensível. A morte é um tabu, um tema que ninguém gosta ou quer falar. Mas naquele instante, preferi fazer diferente. E começamos a conversar sobre a morte. Não sou psicóloga, mas como educadora sentia-me no dever de auxiliá-lo. Perguntei:
-- E como você se sente depois que seu irmão morreu?
-- Às vezes fico triste, às vezes não.
-- Você tem saudades dele?
-- Às vezes.
-- E o que você faz quando tem saudades?
-- Eu oro.
-- Muito bem, Davi. Toda vez que sentir saudades do seu irmão, ore por ele. Ele vai receber sua oração como uma mensagem, onde quer que ele se encontre.
-- Ele está morando no céu.
-- Sim, e dentro do seu coração também.
-- Mãe, ele mora no meu coração? E no seu também?
A mãe só acenou que "sim" com a cabeça e ele olhou pra mim muito desconfiado. Tinha esquecido como criança entende tudo ao pé da letra e tentei explicar melhor.
-- Sim, Davi, mas não como você imagina. Todo o amor e carinho que você guarda por ele dentro do seu coração faz com que você esteja ligado a ele pra sempre...
O pequeno Davi fez uma pausa como quem guarda uma informação e depois continuou.
-- O meu irmão morreu porque não conseguia comer direito... Ele ficou fraquinho, fechou os olhos e morreu. Por isso eu como direitinho. Não pode comer muito doce!
-- Que bom que você come direitinho. Isso ajuda na sua saúde.
-- É... Tia, um dia eu vou voltar no INCA pra ganhar um relógio do Batman. Melhor: dois. Um pra mim e outro para o Lucas, meu amigo. Eles dão relógio de brinquedo para as crianças lá.
-- Você gosta do Batman?
-- Sim.
-- Um dia você pode ter um relógio do Batman sem precisar ir ao INCA pra isso. Se Deus quiser.
As falas de Davi começaram a chamar a atenção de outros passageiros.
-- Nossa! Como esse bebê fala certinho! Disse uma jovem atrás de nós.
Davi olhou pra trás ofendido e resmungou com a mãe:
-- Mãe, diz pra ela que eu não sou um bebê. Eu já tenho 5 anos!
A indignação era a expressão máxima de quem desejava ser levado a sério. Um " bebê" não tem questões tão urgentes sobre a morte de um irmão...
Eu estava perto da minha estação e antes de me despedir, disse:
-- Davi, você não sabe disso ainda, mas você é uma pessoa muito especial.
Não sabia o que mais poderia fazer por ele. Nem sei se agi corretamente o tempo todo, mas foi com muito amor e sinceridade que emprestei meus ouvidos e colo para o pequeno Davi enfrentar um "gigante": a dificuldade de compreender a morte.
P.S.: É urgente a necessidade de uma "educação para a morte" tanto para os pequeninos, quanto para nós, adultos. A morte é algo doloroso, mas precisamos aprender a compreender nossas emoções diante dela.