[Parte 1]
Naquela altura ela já escrevia sem pensar. Deixava uma carta imensa que mais parecia um tratado. Escreveu tudo o que estava engasgado. Tudo que não pode dizer anos a fio acreditando que o seu silêncio era um modo de preservar algo raro. Não poupou palavras pesadas, não corrigiu os erros de português, nem retocou as rasuras com o corretivo. Foi a seco! Na lata! Sem falsas delicadezas!
Não era uma questão de violência, era uma questão de ruptura. Estava farta. Era óbvio. Mas não sabia que direção tomar.
Quando o último parágrafo foi assinado, o destinatário chegou leve e descompromissado.
Ela se perguntou: quem é esse ser? Quem é essa pessoa?
A pessoa em questão percebia a existência como um bicho: vivia por instintos. Tateava o mundo com os olhos, com o olfato, com o tato, com a língua, com o falo... E sempre queria mais estímulos... Estímulos... Estímulos...
-- Vida pobre! Vida infeliz! -- pensou por um instante enquanto segurava a carta nas mãos. Depois resolveu repensar...
-- Pobre sou eu! Infeliz sou eu! Escolhi o que de pior existe. Sou vítima de mim mesma. -- E sem pestanejar pegou suas coisas e partiu em direção à porta.
Ele perguntou: -- Onde vai?
E ela respondeu lúcida: -- A pergunta correta é: onde estive durante todo esse tempo?
O homem de instintos não era tolo e percebeu que ela estava partindo... Sua pele se arrepiou em medo. Uma forte dor no estômago. As pernas bambearam. Seus olhos ficaram úmidos. Tudo era intenso. Tão intenso que o fez pensar: "-- Por que estou me sentindo assim?" E o pensamentou passou a incomodar mais do que as sensações do corpo.
Deitou-se na cama e o cheiro dela ainda estava ali. O perfume o fez tremer violentamente...
"-- Por que estou me sentindo assim?"
Um dia, dois dias, um mês, um ano... E a pergunta ainda ecoava... Encontrou perdido, no canto do quarto, a carta-ruptura quem nem pensavam existir... Leu, releu. E formolou uma nova pergunta: "-- Que pessoa é essa de quem ela fala?" Passou em revista todas as suas lembranças e todos os seus atos e não via, nem por um segundo, esse ser animalizado que ela enxergava. E no outro canto do quarto o reflexo do espelho o questionava: "-- Será?"
E como lama que sobe do fundo do rio, lembrou-se de todas as pequenas mentiras, de todos os pequenos atos de arrogância, de todos os minúsculos gestos desamor, de todo gesto banal de descompromisso, e de todos as grandes satisfações do egoísmo.
Naquele instante, o homem de instinto percebeu-se homem de consciência. E de homem de consciência desejou ser homem de reparação. Seguiu-se longos e duros anos, no silêncio dos pensamentos, para elaborar o sentimento sincero capaz de dizer uma única palavra: "Perdão".
28 de jun. de 2012
Os homens e mulheres de instinto, consciência e reparação
Postado por
Priscila
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Ficção amorosa
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Este blog é um esforço lúdico para (re)elaborar a experiência amorosa. O amor na música, na memória, no cinema, na literatura, ou no "acaso".
É aqui que eu planto o meu silêncio e vejo brotar arte.
É aqui que eu me reinvento e abro espaço para o novo chegar.
Futures amores, sejam bem-vindos!
Leia o Manifesto.
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